Quando as pessoas ou as empresas compram um carro, umcomputador ou uma televisão, pagamos um valor definido e único pelo bem e nãopor cada peça que foi utilizada para sua fabricação. Por outro lado, se meoferecessem as peças que formam o carro, pagando por cada uma, por cada pneu,porca ou chip a preços de mercado, e seu eu não desistir antes, podem tercerteza, pagaria por no mínimo 10x mais pelo conjunto de peças do que pagariapelo carro montado e pronto para dirigir.
Esta analogia está muito próxima do que acontece na saúde. Amaioria dos planos de saúde ou empresas compram porcas e parafusos, isto é,procedimentos como consultas, exames de sangue, cirurgias, ressonâncias etc. junto auma miríade de fornecedores (médicos, hospitais laboratórios etc.).
[rock-convert-cta id=”1604″]
Como não tem claro o que efetivamente irão obter no final decada episódio de saúde – de fato, não há grandes preocupações com isso – passama maior parte do tempo em discussões de detalhes que na indústria seriainaceitável. Se assim fosse, teríamosverdadeiros Frankensteins circulando pelas ruas, pois não existiria preocupaçãocom a questão de como seria o carro ao final, após conectarmos tudo que foiadquirido isoladamente (peças ou grupos de peças). Poderíamos ter um carro com uma carroceria deuma Ferrari, um motor 1.0 e um sistema de frenagem de um Scania, por exemplo.
Do outro lado, os prestadores, como laboratórios, médicos ehospitais, procuram melhorar e otimizar seus resultados (seja qualidade,lucratividade ou mesmo humanização) porém, sempre dentro do limitado escopo quevendem, isto é, procedimentos. Por conseguinte, todos trabalham com o foco emobter os maiores resultados e qualidade no seu microcosmo: por exemplo, ofabricante de equipamentos vende equipamento de ressonância com funções esofisticação muito além das necessidades e expectativas, o hospital realizacirurgias com o que há de mais sofisticado, laboratórios realizam coletas deexames em locais que parecem um hotel de luxo etc. Esse modelo traz um resultado onde a soma doscustos dos procedimentos de um tratamento é maior do que deveria custar, istoé, por mais estranho que pareça, a soma das partes é muito maior que o todo.
No sistema de saúde, os nossos carros são os episódios desaúde. Episódio de saúde inicia quandouma pessoa é diagnosticada com um problema de saúde e termina somente com a suatotal recuperação ou estabilização de sua saúde. Um bom exemplo seria umacirurgia bariátrica: a partir do momento da decisão pelo procedimento temos apreparação psicológica, adequação prévia da alimentação, internação, cirurgia,estabilização, acompanhamento pós-alta por psicólogo e médico e, por fim, aestabilidade de sua saúde. Esse episódio pode durar 11 meses até o totalequilíbrio do paciente.
Seria bom senso comprar o carro inteiro para esta jornada. Isto é,pagar um valor mensal durante os 11 meses para o prestador ou grupo deprestadores envolvidos. Mas, ao invés disso, o que é feito: ignoramos 10 meses,29 dias e 22 horas e negociamos à exaustão 2 horas de cirurgia, e o restantedas “peças” compramos aos poucos, sem discutir como se encaixam.
Essa situação leva à realidade dosistema atual: de um lado, prestadores oferecendo maior qualidade deprocedimentos (peças), no maior preço possível. De outro, pagadores que buscam,cada vez mais, somente o menor custo.
Voltando à nossa analogia, nósignoramos que, se comprássemos o carro completo o custo total ficaria pelomenos dez vezes mais barato, todos teriam lucro pois não existiria a hipertrofiadesnecessária no design de cada peça (ou na execução de cada procedimento).
Não acredito que o ecossistema de saúdepague dez vezes o valor do episódio comprando “peças”, mas com certeza essesistema que aí está paga bem mais do que seria razoável caso comprássemosepisódios. E isso não passa por questões como fee-for-service ououtros modelos de pagamento, e sim pelo objeto que está sendo pago:procedimentos.
Há algumas décadas modelos baseadosem bundled payment for episodes (modelos de pagamentosagrupados ou “empacotados” em episódios) florescem no Canadá, nos EstadosUnidos e na Europa. Por que não no Brasil?
Tanto o lado pagador como o lado dosprestadores precisam se preparar para novos modelos de relacionamento, e umexcelente começo pode ser bundled payment for episodes. Sabemos quesua aplicação em um ambiente tão complexo e reducionista não é simples, masprecisamos avançar em direção a novos paradigmas.
Por tudo isso quero ser tratado como aindústria automobilística trata meu carro! Não é apenas uma questãofinanceira, mas um imperativo de qualidade e racionalidade.